quarta-feira, 9 de março de 2011

POEMAS DE CARLOS DRUMMOND DE ANDRADRE

Carlos Drummond de Andrade
(1902-1987)


POESIA

Gastei uma hora pensando um verso
que a pena não quer escrever.
No entanto ele está cá dentro
inquieto, vivo.
Ele está cá dentro
e não quer sair.
Mas a poesia desse momento
inunda minha vida inteira.

AURORA

O poeta ia bêbado no bonde.
O dia nascia atrás dos quintais.
As pensões alegres dormiam tristíssimas.
As casas também iam bêbadas.

Tudo era irreparável.
Ninguém sabia que o mundo ia acabar
(apenas uma criança percebeu mas ficou calada)
Que o mundo ia acabar às 7 e 45.
Últimos pensamentos! últimos telegramas!
José, que colocava pronomes,
Helena, que amava os homens,
Sebastião, que se arruinava,
Artur, que não dizia nada,
embarcam para a eternidade.

O poeta está bêbado, mas
escuta um apelo na aurora:
Vamos todos dançar
entre o bonde e a árvore?

Entre o bonde e a árvore
dançai, meus irmãos!
Embora sem música
dançai, meus irmãos!
Os filhos estão nascendo
com tamanha espontaneidade.
Como é maravilhoso o amor
(o amor e outros produtos).
Dançai meus irmãos!
A morte virá depois
como um sacramento.

QUERO ME CASAR

Quero me casar
na noite na rua
no mar ou no céu
quero me casar.

Procuro uma noiva
loura morena
preta ou azul
uma noiva verde
uma noiva no ar
como um passarinho

Depressa, que o amor
não pode esperar !


NÃO SE MATE

Carlos, sossegue, o amor
é isso que você está vendo:
hoje beija, amanhã não beija,
depois de amanhã é domingo
e segunda-feira ninguém sabe
o que será.

Inútil você resistir
ou mesmo suicidar-se.
Não se mate, oh não se mate,
reserve-se todo para
as bodas que ninguém sabe
quando virão,
se é que virão.

O amor, Carlos, você telúrico,
a noite passou em você,
e os recalques se sublimando,
lá dentro um barulho inefável,
rezas,
vitrolas,
santos que se persignam,
anúncios do melhor sabão,
barulho que ninguém sabe
de quê, praquê.

Entretanto você caminha
melancólico e vertical.
Você é a palmeira, você é o grito
que ninguém ouviu no teatro
e as luzes todas se apagam.
O amor no escuro, não, no claro,
é sempre triste, meu filho, Carlos,
mas não diga nada a ninguém,
ninguém sabe nem saberá.


PROCURA DA POESIA

Não faças versos sobre acontecimentos.
Não há criação nem morte perante a poesia.
Diante dela, a vida é um sol estático,
não aquece nem ilumina.
As afinidades, os aniversários, os incidentes pessoais não contam.
Não faças poesia com o corpo,
esse excelente, completo e confortável corpo, tão infenso à efusão lírica.

Tua gota de bile, tua careta de gozo ou de dor no escuro
são indiferentes.
Nem me reveles teus sentimentos,
que se prevalecem do equívoco e tentam a longa viagem.
O que pensas e sentes, isso ainda não é poesia.

Não cantes tua cidade, deixa-a em paz.
O canto não é o movimento das máquinas nem o segredo das casas.
Não é música ouvida de passagem, rumor do mar nas ruas junto à linha de espuma.

O canto não é a natureza
nem os homens em sociedade.
Para ele, chuva e noite, fadiga e esperança nada significam.
A poesia (não tires poesia das coisas)
elide sujeito e objeto.

Não dramatizes, não invoques,
não indagues. Não percas tempo em mentir.
Não te aborreças.
Teu iate de marfim, teu sapato de diamante,
vossas mazurcas e abusões, vossos esqueletos de família
desaparecem na curva do tempo, é algo imprestável.

Não recomponhas
tua sepultada e merencória infância.
Não osciles entre o espelho e a
memória em dissipação.
Que se dissipou, não era poesia.
Que se partiu, cristal não era.

Penetra surdamente no reino das palavras.
Lá estão os poemas que esperam ser escritos.
Estão paralisados, mas não há desespero,
há calma e frescura na superfície intata.
Ei-los sós e mudos, em estado de dicionário.
Convive com teus poemas, antes de escrevê-los.
Tem paciência se obscuros. Calma, se te provocam.
Espera que cada um se realize e consume
com seu poder de palavra
e seu poder de silêncio.
Não forces o poema a desprender-se do limbo.
Não colhas no chão o poema que se perdeu.
Não adules o poema. Aceita-o
como ele aceitará sua forma definitiva e concentrada
no espaço.

Chega mais perto e contempla as palavras.
Cada uma
tem mil faces secretas sob a face neutra
e te pergunta, sem interesse pela resposta,
pobre ou terrível, que lhe deres:
Trouxeste a chave?

Repara:
ermas de melodia e conceito
elas se refugiaram na noite, as palavras.
Ainda úmidas e impregnadas de sono,
rolam num rio difícil e se transformam em desprezo.


POEMA DA NECESSIDADE

É preciso casar João,
é preciso suportar Antônio,
é preciso odiar Melquíades
é preciso substituir nós todos.

É preciso salvar o país,
é preciso crer em Deus,
é preciso pagar as dívidas,
é preciso comprar um rádio,
é preciso esquecer fulana.

É preciso estudar volapuque,
é preciso estar sempre bêbado,
é preciso ler Baudelaire,
é preciso colher as flores
de que rezam velhos autores.

É preciso viver com os homens
é preciso não assassiná-los,
é preciso ter mãos pálidas
e anunciar O FIM DO MUNDO.


MÃOS DADAS

Não serei o poeta de um mundo caduco.
Também não cantarei o meu futuro.
Estou preso à vida e olho meus companheiros.
Estão taciturnos mas nutrem grandes esperanças.
Entre eles, considero a enorme realidade.
O presente é tão grande, não nos afastemos.
Não nos afastemos muito, vamos de mãos dadas.

Não serei o cantor de uma mulher, de uma história,
não direi suspiros ao anoitecer,a paisagem vista da janela,não distribuirei entorpecentes ou cartas de suicidas,não fugirei para as ilhas nem serei raptado por serafins.
O tempo é minha matéria, o tempo presente, os homens presentes,
a vida presente.


CANÇÃO AMIGA

Eu preparo uma canção
em que minha mãe se reconheça,
todas as mães se reconheçam,
e que fale como dois olhos.

Caminho por uma rua
que passa em muitos países.
Se não me vêem, eu vejo
e saúdo velhos amigos.

Eu distribuo um segredo
como quem ama ou sorri.
No jeito mais natural
dois carinhos se procuram.
Minha vida, nossas vidas
formam um só diamante.
Aprendi novas palavras
e tornei outras mais belas.

Eu preparo uma canção
que faça acordar os homens
e adormecer as crianças.


BRINCAR NA RUA

Tarde?
O dia dura menos que um dia.
O corpo ainda não parou de brincar
e já estão chamando da janela:
É tarde.

Ouço sempre este som: é tarde, tarde.
A noite chega de manhã?
Só existe a noite e seu sereno?

O mundo não é mais, depois das cinco?
É tarde.
A sombra me proíbe.
Amanhã, mesma coisa.
Sempre tarde antes de ser tarde.


NOVA CASA DE JOSÉ

José entra resmungando no Paraíso.
Lança os olhos em torno:
-- Pensei que fosse maior.
O azul das paredes está desbotado.
Então é isto, o Céu?

Os anjos entreolham-se: Ah, José!
Estávamos tão contentes com sua vinda...
José procura o recanto menos luminoso
para encastelar-se com sua canastra:
-- Ninguém me bula nisto.
O serafim-ecônomo sorri:
-- Sossegue, José. Aqui todas as coisas
viram essência.
Você terá a essência de sua canastra.

A taciturnidade de José causa espécie aos velhos santos
que pulam carniça, brincam de roda:
-- Não quer vir conosco? A amarelinha
vai ser uma coisa louca...
Leve aceno de cabeça e: -- Obrigado
(entre dentes) é resposta de José.

São Pedro coça a barba: como fazer
José sentir-se realmente no Paraíso?
É sua casa natural, José foi bom,
foi ríspido mas bom.
Carece varrer do íntimo de José as turvas imagens
de desconfiança e solidão.
-- Não há outro remédio, suspira São Pedro.
Vou contar-lhe uma piada fescenina.

E José sorri ouvindo a piada.


COPA DO MUNDO DE 70
"MOMENTO FELIZ"

Com o arremesso das feras
e o cálculo das formigas
a seleção avança
negaceia
recua
envolve.
É longe e em mim.
Sou o estádio de Jalisco, triturado
de chuteiras, a grama sofredora
a bola mosqueada e caprichosa.
Assistir? Não assisto. Estou jogando.

No baralho de gestos, na maranha
na contusão da coxa
na dor do gol perdido
na volta do relógio e na linha de sombra
que vai crescendo e esse tento não vem
ou vem mas é contrário . . . e se renova
essa lenta lesma de Replay.
Eu não merecia ser vaiado
por esse tiro frouxo sem destino.
Meus onze atletas
são onze meninos fustigados
por um deus fútil que comanda a sorte.
É preciso lutar contra o deus fútil
fazer tudo de novo; formiguinha
rasgando seu caminho na espessura
do cimento do muro.

Então crescem os homens. Cada um
é toda a luta, sério. E é todo arte.
Uma geometria astuciosa
aérea, musical,de corpos sábios
a se entenderem, membros polifônicos
de um corpo só, belo e suado. Rio,
rio de dor feliz, recompensada
com TOSTÃO a criar e JAIR terminando
a fecunda jogada.

É GOOOOOOOOOOL na garganta florida
rouca exauta, gol no peito meu aberto
gol na minha rua nos terraços
nos bares nas bandeiras nos morteiros
GOL
na girandolarrugem das girândolas gol
na chuva de papelzinhos celebrando
por conta própria no ar: cada papel,
riso de dança distribuído
pelo país inteiro em festa de abraçar
é gol legal é gol natal é gol de mel e sol

Ninguém me prende mais, jogo por mil
jogo em PELÉ o sempre rei republicano
o povo feito atleta na poesia
do jogo mágico.
Sou RIVELINO a lâmina do nome
cobrando, fina, a falta.
Sou CLODOALDO rima de EVERALDO
Sou BRITO e a sua viva cabeçada
com GERSON e PIAZZA me acrescento
de forças novas. Com orgulho certo
me faço capitão CARLOS ALBERTO
FÉLIX, defendo e abarco
em meu abraço a bola e salvo o arco.

Como foi que esquentou assim o jogo?
Que energias dobradas afloraram
do banco de reservas interiores?
Um rio passa em mim ou sou o mar atlântico
passando pela cancha e se espraiando
por toda a minha gente reunida
num só vídeo, infinito, num ser único?

De repente o BRASIL ficou unido
contente de existir, tricando a morte
o ódio, a pobreza, a doença o atraso triste
por um momento puro de grandeza
e afirmação no esporte.
"Vencer com honra e graça
com beleza e humildade
é ser maduro e merecer a vida,
ato de criação ato de amor"
A ZAGALO, zagal prudente,
e a seus homens de campo e bastidor
fica devendo a minha gente
este minuto de felicidade

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